OUTRA ENTREVISTA SOBRE A ÁFRICA E A FOME
- Frei Basílio de Resende ofm
- 22 de ago. de 2023
- 8 min de leitura
ENTREVISTA COM ANA CLARA
DO COLÉGIO SANTO ANTÔNIO BELO HORIZONTE ,.
Noviciado São Benedito
Montes Claros, 01 de agosto de 2023
1. Qual seu nome completo, sua idade e com o que trabalha/trabalhou?
Frei Basílio de Resende ofm (nome de Batismo e civil: Sylvério Bosco de Resende), sou natural de coronel Xavier Chaves, nasci aos 17 de setembro de 1937, então estou com 85 anos.
Moro e trabalho no Noviciado São Benedito, em Montes Claros, MG. Esta é uma casa de formação para a vida religiosa franciscana. Trabalho, junto com dois outros frades franciscanos, no acompanhamento e formação dos noviços. Temos um regime contemplativo de vida, com celebrações litúrgicas, leituras espirituais, convivência fraterna, trabalho manual, estudos, atendimentos espirituais e celebrações em comunidades rurais e urbanas.
2. Quando você foi morar lá e quando voltou?
Quando fui lá, na África, em Moçambique? Estive lá na última década do século passado. Saí do Brasil no início de outubro de 1989, passando por Portugal para receber o visto de entrada e estadia em Moçambique. Cheguei no Aeroporto de Maputo, a capital do País, no dia 20 de outubro de 1989 e parti de lá, de volta ao Brasil, definitivamente, no dia 03 de dezembro de 1999.
3. Enquanto morou lá, você teve a oportunidade de testemunhar a situação da fome? Pode nos contar sobre?
Sim, o problema da alimentação é uma grave situação social e humana no mundo, a falta para uns e o desperdício para outros. Há um livro de um estudioso brasileiro, Josué de Castro, que se chama “A Geografia da Fome”. Na África, sobretudo em alguns países e ambientes a fome é dramática. Sim, tive que partilhar o que comemos com várias pessoas.
4. A questão da fome na África parece estar relacionada a outros problemas sociais e econômicos? Quais são essas interconexões que você percebeu?
Verdade, a questão da fome está relacionada com vários outros problemas: com as administrações públicas, concentração de riquezas e rendas nas mãos de minorias, desigualdades sociais, ausência de projetos sociais e econômicos para atender às necessidades básicas das pessoas: alimentação, saúde, moradia, trabalho, educação, espiritualidade, afinal, condições de vida humana com dignidade para todas as pessoas, todos os cidadãos. Agora, o problema da fome na África, está sobretudo, conectado com as corrupções de governantes, o acúmulo das riquezas com desperdícios nas mãos de poucos, e as guerras entre grupos ideológicos, religiosos e étnicos.
5. Você participou de algum projeto social ou contribuiu de alguma maneira com o combate à fome na África?
Sim, no nível de indivíduos com fome, procurei atender, partilhando o possível. Algumas coisas procurei não negar aos indivíduos: pão, remédio e visita solidária.
Ao nível de comunidades, Moçambique, no meu tempo lá, era um país em guerra, um país agrícola, e uma sociedade de pequenos comércios de canto de esquina. Com poucos donativos que eu levava daqui, e com a autorização dos meus superiores de lá, eu emprestava pouco dinheiro, a fundo perdido, para necessidades urgentes e pequenos negócios... Muitos conseguiam devolver o empréstimo, possibilitando-me a ajudar outros. E eu lhe s dizia que isto não era meu, que era de cristãos e comunidades pobres do Brasil que queriam ser solidários com nossos irmãos de África.
A nível institucional, colaborávamos com instituições beneficentes e de desenvolvimento social. Por exemplo, A Cáritas, uma organização da Igreja Católica, de ajuda internacional.
Procurávamos apoiar e convocar novas pessoas para um trabalho de solidariedade e ajuda do pobre para o pobre. E chamar a um “Não” às guerras, violências e roubos.
E toda a nossa pregação e catequese, convidando todos, de todas as crenças, culturas, raças, a viver a utopia do Reino de Deus e sua justiça, que Jesus inaugurou, proclamou e pregou; e chamou discípulos a segui-lo. Trabalhávamos sobretudo com as pequenas comunidades católicas, e pequenos grupos.
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Dois episódios que ilustram minha maneira de agir diante de pessoas com fome: com uma prostituta e com uma mãe de família:
1. Com uma prostituta – Num semáforo de Maputo, uma jovem prostituta se aproxima oferecendo seus serviços. Digo-lhe que não, “Obrigado!”. Ela insiste, “Por favor, estou com fome!”. Digo-lhe que pode entrar. Ela corre, abre a porta do passageiro e entra. Tenta me tocar, contendo a minha parte, digo-lhe “Por favor, hoje não”. Levo-a a um restaurante. Digo-lhe que me espere no carro. Entro e peço um frango assado e arroz para levar. Entrego-lhe e deixo-a onde ela quis. E fui embora. Nada sei dela, nome, família, antepassados e descendentes. Deus sabe!
2. Uma mãe de família – Éramos 12 pessoas em casa. Eu e 11 jovens freis em formação e estudantes de Teologia, em Maputo. A cozinheira pede a conta e leva uma jovem conhecida dela para substitui-la. Ela pedia o trabalho, “Por favor!”. Eu a achei muito jovem e bonita, para ficar entre os nossos jovens freis e para grandes trabalhos e serviços da casa. Eu perguntei, “Você consegue?”. Disse que sim. Contratei-a por experiência. Depois fiquei sabendo que tinha 3 filhos em idade escolar e que não estavam na escola. Nem ela tinha registro civil. O marido estava trabalhando na África do Sul. Disse aos Freis que “Não podíamos resolver o problema nacional do analfabetismo, mas iríamos dar escola para essas crianças”. Levei-a a um Cartório, fui testemunha dela, tirou carteira de identidade e registrou os 3 filhos. Pagamos as taxas escolares e compramos livros e cadernos para as crianças. Era analfabeta, mas muito inteligente, hábil e eficiente dentro da sua cultura. Tentei alfabetizá-la com o Método Paulo Freire. Quando ia fazer um ano de trabalho, ela comentou o fato. Eu perguntei-lhe se havia alguma razão para festejar. Ela disse: “Sim. Tenho quatro razões. Primeiro, em casa temos comida! Segundo, meus filhos estão na escola! Terceiro, eu sou pessoa! Quarto, minha casa é casa!”
No ano passado, em 2022, um Frade Visitador Geral, em Moçambique, ligou para mim de Maputo dando-me os cumprimentos de Dona Rute, a cozinheira da casa.
Então, é a prática daquela filosofia de vida: “Pensar globalmente! Mas agir localmente!”. Eu não posso mudar e salvar o mundo. Mas posso fazer um gesto significativo e eficaz, no local e no momento em que estou.
6. Como as populações africanas tradicionais lidavam com a fome? Eles valorizavam compartilhar com todos a pouca comida que tinham?
As populações tradicionais africanas, já vão desaparecendo. Existe um livro belíssimo chamado “Vanishing Africa” de Mirella Ricciardi, uma reportagem fotográfica sobre a beleza da cultura africana. Para compreender a beleza do caráter, da alma e da cultura africana, há um livro chamado “Uma Fazenda na África” (Out of Africa) de Karen Blixen, do qual foi feito um belo filme “Entre Dois Amores”. É verdade, que os livros e o filme, são a perspectiva e o olhar de europeus colonizadores sobre a África. Mas mostram certa grandeza humana na cultura africana.
No entanto, as populações africanas, tradicionais, feita de pastores, agricultores, pescadores, caçadores, viviam uma cultura em que a vida humana tinha algo de belo, de solidário, de cuidado pela sua religião do culto dos antepassados. A personalidade básica do ser humano africana é tribal. Eles vivem uma espécie de personalidade corporativa. Seguiam normas e costumes mais ligados à terra, à produção agrícola, cultivo de animais; alguns eram nômades; eles se organizavam em etnias, em clãs. Eles respeitavam o grande espírito criador de todos.
Talvez sejam meio romantizadas essas expressões, mas eles tinham um regime de vida mais sóbria, mais solidária, mais grande família socialmente.
Conhece a dita filosofia do Ubuntu? “Eu sou, porque nós somos”
7. Quais as principais mudanças você acha que deveriam ser feitas para melhorar a situação dos necessitados em relação a fome?
Essa é uma pergunta importante e complexa. Vou começar com duas palavras da Bíblia: “No suor do teu rosto comerás o pão...” (Gn 3,19) e “Dai-lhes vós mesmos de comer!” (Mt 14,16). Quero dizer com isto que o alimento é fruto do trabalho humano (individual e coletivo, uma questão de economia) e que esse fruto do trabalho e esforço humano precisa ser distribuído e compartilhado por todos, segundo as necessidades de cada pessoa, família, comunidade, nação (uma questão de justiça social, solidariedade, organização e política).
8. Quais foram os maiores desafios que você notou em relação à distribuição de alimentos e ajuda humanitária nas áreas afetadas pela fome?
Superar o egoísmo, a avareza e cobiça de uns em se enriquecer, desviando donativos de alimentos e usando-os como mercadoria. Falta de ética e de senso de solidariedade social. Falta de compaixão com o sofrimento de tantas pessoas. Mudança de uma mentalidade belicista e militarista de grupos armados (dos governantes e dos seus opositores). O trabalho humano - científico e tecnológico - é dirigido para produzir armas e instrumentos de destruição em guerras; e não para produzir alimentos e para construir moradias, escolas, hospitais, estradas
9. Na sua opinião, como indivíduo que testemunhou a situação de perto, quais seriam as medidas mais eficazes para combater a fome na África?
Em termos evangélicos, seria a conversão dos corações humanos; uma mudança de mentalidade geral de indivíduos, grupos e sociedades; uma mudança cultural, de consciência social, de comportamentos políticos. E isto é um processo histórico demorado, que exige educação, mudanças de mentalidades, de comportamentos, de atitudes, de cultura, de transformações estruturais. Uma verdadeira e integral conversão. Na linguagem da Igreja, seria mudar de uma cultura do egoísmo, do ódio, da guerra, da violência para uma cultura do altruísmo, do amor, da paz, da ação não violenta. Mudar de uma cultura da morte para uma cultura da vida. E isso leva gerações, do esforço humano e da graça divina agindo nos corações e mentes das pessoas, comunidades e povos.
No entanto, lembremos da parábola do joio e do trigo (os filhos do Reino e os do Maligno, Mt 13,38), que crescem juntos durante a história humana até o fim (Mt 13,24-30.36-42).
10. Durante sua morada, em algum momento esteve em um país onde a seca é predominantemente? Se sim você acha que essa seca afeta muito a produção de alimentos na região?
Outro problema global a ser enfrentado, as secas, as mudanças climáticas. Não estive em regiões com o flagelo da seca. Mas a produção de alimento não é local. Com uma boa organização política, pode-se atender os necessitados pela carência local de alimentos com programas sociais.
11. Sobre as doenças causadas pela fome, o que você acha que deveria ser feito para evitá-las?
A resposta a esta questão, está contida nas respostas aos números 7 e 8: será uma adequada política para a alimentação e para a saúde; uma justa distribuição dos alimentos aos necessitados e um cuidado específico da saúde dos subnutridos.
12. Após essa experiência, como você acha que essa vivência impactou sua visão sobre a fome e as questões humanitárias na África? Você considera que isso influenciará suas ações e pensamentos futuros?
Essa pergunta me lembrou que, estando em Moçambique, a Cáritas, uma ONG católica para o desenvolvimento humano e para atender aos necessitados de alimentação, me pediu para escrever uma apostila sobre “As Fomes do Ser Humano”. É bom lembrar a antropologia bíblica, que afirma que o ser humano, é construído de “Espirito, Alma e Corpo” (1Ts 5,23) – “Coração e Mente” (Mt 22,37-38; Dt 6,5). Coloquei que o ser humano tem fome de alimento e de segurança alimentar; fome emocional e de afetos, de amar e de ser amado; fome de dignidade e de respeito; fome de segurança e bem-estar; fome de conhecimentos e de sabedoria; fome de beleza e arte... etc.
É bom lembrar as 5 Necessidades Básicas do Ser Humano elaboradas pelo psicólogo humanista Abraham Maslow: “Fisiológicas (de ar, água, comida, exercício, repouso e saúde), de Segurança (abrigo, estabilidade, segurança), Sociais (se sentir querido, pertencer a um grupo, se sentir incluído), de Estima (poder, reconhecimento, prestígio e autoestima), de Autorrealização (desenvolvimento, criatividade, autonomia, realização, espiritualidade)”.
Então os líderes e dirigentes das famílias, comunidades, organizações e sociedades humanas, se quiserem ser competentes, eficientes e sábios devem estar atentos em dar condições a todos de terem essas necessidades humanas satisfeitas.
Os africanos são pessoas que gostam de dançar para expressar seus sentimentos e emoções; gostam de viver e de conviver, do aconchego familiar; são muito sensíveis à beleza, às artes.
Minha estadia na África me ajudou a ser mais humilde, mais humano, mais sensível; a gostar mais de viver e de conviver.
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03 de agosto de 2023
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