Thomas Merton / NA LIBERDADE DA SOLIDÃO
- Frei Basílio de Resende ofm
- 9 de ago. de 2021
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(Thomas Merton, “Na Liberdade da Solidão”, Editora Vozes, Petrópolis, 2002, 3ª Edição, p.88. Título original: “Thoughts in Solitude”, 1958, Abbey of Our Lady of Gethsemani. “...o Autor diz aqui algumas coisas que desejava muito dizer-se a si próprio e aos que poderiam estar inclinados a concordar com ele. Isso é sobretudo exato no que se refere à segunda parte do ‘Amor à solidão’. Os que já leram as páginas cheias de estímulo de Max Picard sobre ‘O mundo do silêncio não terão dificuldade em reconhecer que muitas destas meditações foram inspiradas pelo filósofo suíço P.10 ...
Numa época em que o totalitarismo se tem esforçado por todos os meios para degradar e desvalorizar a pessoa humana, esperamos estar certo reclamar a atenção para toda e qualquer sã reação em favor da inalienável solidão do ser humano e da sua liberdade interior. Não pode a criminosa balbúrdia do atual materialismo ter licença de abafar as vozes independentes que jamais cessarão de falar... Está certo insistir em que o homem é um ‘animal social’ – o fato, por si só, é óbvio. Todavia, isso não justifica de modo algum querer tratá-lo como uma simples peça de utilidade numa máquina totalitária – nem tampouco, aliás, numa que fosse religiosa. p12 ”
(Vou copiar aqui, os últimos 4 capítulos da Parte II do livro: XV, XVI, XVII, XVIII. Os títulos dos capítulos e grifos são de Frei Basílio de Resende).
Thomas Merton, nasceu aos 31 de janeiro de 1915, em Prades, França. Morreu aos 10 de dezembro de 1968, em Bangcoc, Tailândia. Monge trapista do Mosteiro Getsemani, Kentucky, Estados Unidos, escritor, poeta, teólogo, pensador, místico.
Seu livro que é o testemunho das buscas de uma geração, “A Montanha dos Setes Patamares”, Editora Itatiaia, BH.
XV - Viver para Deus, com Deus, em Deus.
Logo que nos encontramos realmente sós, estamos com Deus. Alguns vivem para Deus, outros vivem com Deus, outros, ainda, vivem em Deus.
Os que vivem para Deus, vivem com outras pessoas e se entregam às atividades da comunidade. Sua vida está naquilo que fazem.
Os que vivem com Deus, também vivem para ele, mas não vivem naquilo que para ele fazem. Vivem no que diante dele são. Consiste sua vida em ser dele um reflexo, pela própria simplicidade com que vivem e pela perfeição do seu ser que se reflete na pobreza deles.
Os que vivem em Deus não vivem com os outros ou em si mesmos, ainda menos no que fazem, pois ele é quem tudo faz neles.
Sentado que estou debaixo desta árvore, posso viver para Deus, ou com ele ou nele.
Se eu estivesse escrevendo isso para ele, não seria bastante.
Para viver com Deus é necessário refrear constantemente nossa inclinação para falar e moderar nossos desejos de comunicação com outros, mesmo sobre Deus.
Todavia, não é difícil viver em comunhão ao mesmo tempo com os outros e com Deus, contanto que os encontremos nele.
A vida em solidão é – essencialmente – a mais simples. A vida em comum nos prepara para a vida solitária na medida em que encontramos a Deus na simplicidade da vida comum – e em seguida o procuramos mais e o encontramos melhor na simplicidade maior da solidão.
Se, porém, nossa vida comum se vê intensamente complicada (por nossa própria culpa) – é provável que nos tornemos ainda mais complicados na solidão.
Não devemos fugir da comunidade à procura da solidão. Devemos primeiramente encontrar Deus na comunidade; em seguida, ele nos conduzirá à solidão.
Não pode alguém compreender o verdadeiro valor do silêncio se não possui sincero respeito pelo valor da linguagem; pois a realidade que se expressa na linguagem é encontrada diretamente, sem intermediário, no silêncio. Nem nos seria possível encontrar essa realidade em si mesma – isto é, sem seu próprio silêncio, sem que primeiro lá chegássemos pela linguagem.
Palavras do Evangelho:
1) Jesus realiza as palavras dos profetas (Jo 12,32 e Moisés – especialmente Jo 5,47). Seus milagres foram “palavras” – eles não acreditaram nas palavras. “Quem deu crédito ao que nós ouvimos?” (Is 53,1). As palavras de Jesus hão de julgar o mundo (Jo 12,41; Jo 15,22).
2) As palavras de Jesus são palavras do Pai (Jo 12,49; Jo 17,8).
3) Suas palavras nos santificam (Jo 15,3).
4) Especialmente na medida em que são ou implicam preceitos que nos guardam no seu amor (Jo 15,10.11.12) e nos conduzem, por ele, ao Pai (Jo 17,6-10).
Palavras no Gênesis: (2,19-20) Adão dá nomes aos animais, 23. Dá nome à Mulher (3,20). Chama-a Eva.
Palavras em S, Paulo: “Deixai que a palavra de Cristo habite em vós com abundância (Cl 3,16). Ver os motivos para não mentir. Comparar a Parábola do Semeador. “A semente é a Palavra de Deus” (Lc 8).
XVI – ENCONTRAMOS DEUS EM NOSSO PRÓPRIO SER
Encontramos Deus em nosso próprio ser, que é o espelho de Deus.
Mas como encontramos o nosso ser?
As ações são as portas e as janelas do ser. E a experiência de nossa existência não é possível sem alguma experiência do saber ou alguma experiência da experiência.
Daí não podermos encontrar as profundezas do nosso ser pela renúncia a toda atividade.
Se renunciamos à atividade espiritual, podemos cair numa certa escuridão e paz, mas será a escuridão e a paz da carne.
Sentimos que somos, mas o ser que experimentamos é o ser carnal apenas, e se permanecermos no sono dessa treva e nos apegamos à sua doçura, despertaremos para executar obras da carne.
Assim, para encontrar nosso ser espiritual, temos de seguir o caminho traçado por nossa atividade espiritual.
Mas, quando agimos de acordo com a graça, nossas ações não são somente nossas, pertencem a Deus. Se as seguirmos até a sua fonte, nos tornaremos, ao menos potencialmente, capazes de uma experiência de Deus. Pois suas ações em nós nos revelam o seu ser.
O sentido todo da vida consiste em espiritualizar nossas atividades pela humildade e a fé, e em silenciar nossa natureza pela caridade.
“Sair de nós mesmos” é agir no próprio cimo de nosso ser, movidos, não por nossa natureza, mas por Deus que, ao mesmo tempo, está infinitamente acima de nós e habita, no entanto, nas profundezas de nosso ser.
Repousar dessa ação – quero dizer, saborear o fruto dessa ação – é repousar no ser de Deus acima do nosso ser. – Lá onde está o teu tesouro, lá está, também, o teu coração. Reconhecemos que todo valor (tesouro) relativo à nossa ação espiritual vem de Deus – e nosso coração repousa na fonte de que promana tudo que em nós é bom. Não possuímos nosso ser em nós mesmos, mas somente naquele de quem ele brota.
Pela fé, encontro em Deus meu verdadeiro ser. Um ato de fé perfeito deveria ser, ao mesmo tempo, um ato de perfeita humildade.
Deus não revela seus mais puros segredos a quem está pronto a revela-los. Tem segredos que desvenda aos que saberão comunicar a outros alguma ideia deles. Esses segredos, todavia, são propriedade comum a todos. Tem outros segredos que não podem ser contados. O simples fato de contá-los nos torna inaptos a recebê-los.
O maior de todos os segredos de Deus é o próprio Deus.
Espera ele para se comunicar a mim de um modo que jamais poderei expressar a outros ou mesmo em que não saberei eu próprio pensar de maneira coerente. Devo desejar isso em silêncio. Para isso é que devo largar todas as coisas.
XVII – A GRANDE TAREFA DA VIDA EM SOLIDÃO É A GRATIDÃO
A grande tarefa da vida em solidão é a gratidão. O eremita é alguém que conhece melhor que outros a misericórdia de Deus, porque sua vida toda é de inteira dependência, em silêncio e na esperança, para com a secreta misericórdia de nosso Pai do Céu.
Quanto mais adentro na solidão, tanto mais claramente vejo a bondade de todas as coisas.
Para poder viver feliz em solidão, tenho de ter um conhecimento cheio de compaixão a respeito da bondade dos outros, um conhecimento reverente sobre a bondade da criação inteira, um conhecimento humilde da bondade de meu próprio corpo e de minha alma. Como posso viver em solidão, se por toda parte não vejo a bondade de Deus, meu Criador e Redentor, o Pai de todo o bem?
Qual a causa que me tornou mau e odioso a mim mesmo? Foi minha própria loucura, minha treva, que dividiu, pelo pecado, opondo-me à luz que Deus colocou em minha alma para ser reflexo de sua bondade e testemunha de sua misericórdia.
Poderei expulsar o mal de minha alma lutando contra a minha treva? Não foi isso que Deus planejou para mim. Basta desviar-me de minha escuridão, voltando-me para a sua luz. Não tenho de fugir de mim mesmo; basta que me encontre a mim mesmo, não como me fiz, por minha própria estupidez, mas como ele me fez em sua sabedoria e, em sua infinita misericórdia, me refez. Pois é vontade sua que meu corpo e minha alma sejam o templo de seu Espírito Santo, que minha vida seja o reflexo irradiante de seu amor e que todo o meu ser repouse em sua paz. Então, conhecê-lo-ei em verdade, desde que esteja eu nele e que ele esteja, realmente, em mim.
XVIII OS SALMOS E AS ESCRITURAS: O JARDIM E O PARAÍSO DO SOLITÁRIO
Os salmos são, em verdade, o jardim do solitário, e as escrituras, o seu paraíso. Revelam-lhe seus segredos, porque, em sua extrema pobreza e humildade, nada mais tem para fazê-lo viver a não ser os frutos que aí colhe. Para o verdadeiro solitário, a leitura da Sagrada Escritura deixa de ser um “exercício” entre outros exercícios, um meio de “cultivar” o intelecto ou “a vida espiritual”, ou ainda um meio de “apreciar a liturgia”. Àqueles que leem a Escritura num estilo acadêmico, ou estético, ou apenas “devocional”, a Bíblia, de fato, oferece um agradável refrigério e pensamentos úteis. Mas, para penetrar nos segredos íntimos das Escrituras, temos de fazer delas, em verdade, nosso pão cotidiano. Temos de nelas encontrar a Deus nos momentos em que mais dele necessitamos - e, geralmente, quando não temos nenhum outro lugar onde encontrá-lo e lugar algum onde procurar!
‘ - Na solidão descobri, enfim, que desejaste o amor de meu coração, ó meu Deus, o amor de meu coração tal como é – o amor do coração de um homem. Descobri e soube, por tua grande misericórdia, que o amor do coração de um homem abandonado, ferido e pobre te é extremamente agradável e atrai o teu olhar compassivo, e que é teu desejo e tua consolação, ó Senhor meu, estar bem perto daqueles que te amam e te têm por Pai; que não tens, talvez, maior “consolação” (se posso assim me expressar) do que consolar teus filhos aflitos e os que a ti vêm pobres e de mãos vazias, sem outra coisa a não ser a condição humana, suas limitações e grande confiança em tua misericórdia.
‘ Foi unicamente a solidão que me ensinou que não tenho de ser um deus ou um anjo para te ser agradável, que não tenho de me tornar uma pura inteligência, sem sentimentos e sem imperfeição humana, para que consintas em ouvir minha voz.
‘ Não esperas que me torne grande para estar comigo, ouvir-me e me atender foi minha baixeza e condição que te levaram a fazer de mim teu igual, condescendendo a colocar-te a meu nível e a viver em mim por tua misericordiosa providência.
‘ E agora é desejo teu, não que eu te dê as graças e o reconhecimento que recebes de teus anjos magníficos, mas o amor e a gratidão que brotam do coração de uma criança, filho de uma mulher, teu próprio filho.
‘ Meu pai, sei que me chamaste para viver só contigo e para aprender que se não fora eu um mero homem, mera criatura humana capaz de todos os enganos e de todo mal, capaz, também, de um amor frágil e fugidio por ti, não seria capaz de ser teu filho. Tu desejas o amor do coração de um homem porque teu divino filho te ama também com o coração de um homem, e se fez homem para que o meu coração e o dele te amassem com um mesmo amor, que é um amor humano produzido e movido por teu Espírito Santo.
‘ Se, portanto, eu não te amar com o amor e a simplicidade de um homem, e com bastante humildade para ser eu mesmo, jamais provarei toda a doçura de tua paternal misericórdia, e teu Filho, no que toca à minha vida, terá morrido em vão.’
Necessário é que eu seja humano e permaneça humano, para que a Cruz de Cristo não seja vã. Jesus não morreu para os anjos, mas para os homens.
É isso que, na solidão, aprendo dos salmos, pois os salmos estão repletos da simplicidade bem humana de homens como Davi que, como homem, conhecia a Deus e, como homem, o amava, e, portanto, o conhecia, o Deus único e verdadeiro, que haveria de mandar aos homens seu Filho Unigênito, em forma humana, à semelhança do homem, para que os homens, ainda que permanecendo homens, o amassem com amor divino.
E é esse o mistério de nossa vocação: que não deixemos de ser homens para nos tornarmos anjos ou deuses, mas que o amor de meu coração de homem se possa tornar o amor de Deus por Deus e pelos homens, e minhas lágrimas humanas possam cair de meus olhos como lágrima do próprio Deus, porque brotam pela moção de seu espírito no coração de seu filho encarnado. Assim - o dom de piedade cresce na solidão, alimentado pelos salmos.
Quando se aprende isto, nosso amor pelos outros se torna puro e forte. Podemos ir ao seu encontro sem vaidade nem espirito de auto complacência, amando-os com algo da pureza, da mansidão e do escondimento do amor de Deus por nós.
Esse é o verdadeiro fruto e o verdadeiro escopo da solidão cristã.
Paz plena. Fantástico artigo. Quando comecei a viver conscientemente na presença de Deus fui considerado como um "doente mental". Rosário Américo de Resende.